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domingo, março 29, 2020

Dois Ventiladores [Mini Conto]

em tempos de 40tena, uma história de paixão.

inspiração:
https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=935002333584349&id=195257217558868


Dois Ventiladores


Moro numa kitnet. Cômodo grande, mas único. Para mim é perfeito. Nesse grande cômodo possuo dois ventiladores de teto, foram comprados no mesmo dia, mesma loja, mesmo modelo e cores, instalados pelo mesmo eletricista, em locais milimetricamente medidos no teto. Mas, na sua essência, são diferentes...

Um ventilador gira firme e constante. Ventila. Sua imagem torna-se uma massa circular, quando funcionando, não é possível distinguir o detalhes da pá, na verdade não é possível distinguir as pás, quando giram são um único desenho, esse ventilador funciona bem, cumpre sua missão, mas perde sua identidade aí fazê-lo.

O outro não ventila quase nada. Inútil. Inútil? Ele se esforça para girar, mas não consegue, tem algo ali sem explicação... Ele baila no ar, seu movimento incerto possui algum ritmo que eu já vi em alguma dança, os detalhes da pá formam uma nova imagem.

Tem vida. Não cumpre nem de perto a missão que lhe é confiada, mas desafia o mundo, pelo o dos ventiladores, com sua particularidade. 

Covid-19. Mortes. Quarentena. Meu. Equipamento de fotografia está disposto em prateleiras por todo o cômodo, apesar de jovem, já são alguns anos, amo essa tecnologia, quem dera de pudesse roubar almas. Viver só é bom, quando você tem a perspectiva de estar onde quiser, quando quiser. Agora estamos vivendo outro momento, de resguardo, de
valorização da vida, os amigos estão a uma tela de distância.

Do 19º andar, na minha pequena varanda, onde tenho minhas Espadas de São Jorge, posso ver outros prédios menores e muitos outros maiores. As janelas assumem ainda mais a função de olhos dos prédios... Tenho o céu, avenidas desertas, um horizonte urbano e muitos olhos, vou trabalhar. O tempo passa.

Cada foto é um olhar lançado, apesar se imaginarmos que olhamos a esmo na maior parte do tempo, sempre tem algo que prende nosso olhar, nos faz fixar um momento a mira, isso é uma fotografia, nossos olhos são captados antes, por isso quando enxergo pela lente, tenho que aguardar o exato momento que meu olhar é capturado, para então dar o "click".

De algum lugar vem uma música, nesses dias isso tem sido corriqueiro, variados rirmos, sons, batidas, de várias partes diferentes, mas essa música vem de mais longe. Conheço essa melodia. Sim. Apesar de não poder ouvi-la totalmente, devido à distância, que ainda não determinei, a música invade minha mente, ela diz " a câmera que filma os dias deu um giro e parou, na lojinha da cidade com o preço bom, era um dia de inverno quando você chegou, se não fosse seu abraço, compraria um moletom..."

De onde vem? De onde? Lente. Zoom. Preciso de mais. Outra câmera. Zoom. Encontrei.

Num telhado quase em frente ao meu prédio. Uma garota. Dança. Seus movimentos incertos sob um sol brando de uma manhã fria, me lembram meu ventilador que não ventila. Ela não é uma dançarina profissional, não cumpre a arte de dançar com perfeição, mas encanta, cada gesto movimenta seu agasalho verde musgo como se fosse a bandeira de um país hasteada após uma guerra muito longa, sendo levada pelo vento e trazida de volta a vida por ela.

Cesso meu olhar pela câmera, não seria possível registrar a beleza daquele momento e eu não poderia ser plateia numa apresentação intimista assim. Meu grito de chamado saiu da minha garganta quase ao mesmo tempo em que pensei gritar. Ela ouviu. Parou a dança e virou a procura do chamado, reconheceu.

O drone.

Ela ainda procura alguém, tapando o sol dos olhos. Enquanto senta e bebe água pode sentir o corpo que se refresca com uma fina camada de suor, era uma sensação muito revigorante. É quando ouve um som estranho, cada vez mais próximo. Um drone está pousando a sua frente. Olha novamente e vê um rapaz acenando, ele grita algo e aponta o equipamento. Que dia!

Colado ao drone um bilhete, ela o pega e hesita, nesse momento a máquina decola e inicia seu trajeto de volta. O bilhete. Ela olha o rapaz, com um ar esperançoso. Abre o bilhete, que diz "adoro essa música, me envia um "oi"!?", E tinha ali um número. Vou enviar, não só um "oi".

Ela: que susto, mas adorei isso... :-O, meu "oi" para você.

Já havia um disparo no coração, eu era até aquele momento um ventilador que cumpria bem sua missão. Fotografava tudo ao meu redor. Por isso era apenas mais um na massa uniforme dos ventiladores úteis.

Ele: que ótimo receber seu "oi", desculpa pelo susto, que bom que gostou :-)

Ela. Ele. Horas. Ela. Ele. Horas. Ela. Ele. Eles.

Ele: vamos jantar juntos, um vinho?

Ela: Como, não podemos sair...

Seu celular vibra. Uma chamada de vídeo. Ele preenche a tela do seu telefone com um sorriso e chacoalhando uma garrafa de Casillero del Diablo. A resposta é um "sim" com um sorriso. Vamos preparar algo.

Ela no telhado. Ele na varanda. São dois ventiladores que ventilam o essencial.

Celulares e câmeras são testemunhas de um amor em tempos de isolamento. "A câmera
que filma os dias, tomou conta de mim...".

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