O ventre de José
Abriu seus olhos de súbito. A respiração de Maria
o acordara. Não tinha coragem de olhar na direção de sua companheira. Ainda estava
olhando para a marquise que os cobria timidamente quando ouviu algo. Outra respiração.
Outras. Os cachorros. Assistindo. Ela precisava dele. Coragem José. É hoje.
Ainda era madrugada e ele havia previsto um
dia tranquilo para os dois depois de semanas tão luminosas e barulhentas. Primeiro
segurou a mão de sua linda Maria e disse que estava com ela, ela lhe sorriu,
mas gemia... levemente... e suava em
bicas. Seus lábios esbranquiçados destoavam de sua pele negra.
Colocou-a em seu carrinho de coletar papelão
e começou a levá-la para um hospital, as rodas de motocicleta, que sua Maria lhe dera de presente surpresa, sustentavam muitos
quilos todos os dias, dos lados via-se claramente triângulos de sinalização
pendurados, na traseira uma placa com o dizer “Deus é fiel” e na frente José. Puxando. Abria o
caminho na madrugada quente e seca de dezembro.
Avistou um orelhão, mas quem o atenderia;
quem ouviria sua voz e sua súplica? Seus braços tremiam e suas pernas
fraquejavam, as quatro moringas, penduradas por barbantes, na grande alça
quadrada de aço do seu carrinho estavam vazias, lógico, afinal, água era um
luxo do qual eles disporiam apenas depois de uma longa jornada que não se realizará
mais.
O céu torna-se rapidamente num lindo azul, bem claro. Os pássaros se agitam nas árvores, criando uma bela chuva de flores
amarelas e pequenas, ele sente a maciez que o tapete cria ao passar com o
carrinho. Força. Rápido.
Um grito. Os cachorros uivam. Dois gritos. Não
podia continuar a puxar o carrinho de costas para o ocorrido no interior
daquela manjedoura tão singular. Parou. Entrou também e deitado ao seu lado a
abraçou. Pode sentir o cravar das unhas de Maria em seu peito e um silencioso
deslizar de suas mãos seguido de quase um desmaio.
Levantou-se e viu uma pequena criatura sendo
lambida freneticamente pelos cachorros, tirou-os com cuidado e pegou a criança
em seus braços. Maria os olhava, transpassada a alma por uma espada de dor e fome e antes que ela
desmaiasse, José lhe disse:
__ É um menino...
Sorrisos.
Latidos.
Um carrinho de reciclagem chega à porta do
hospital.