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terça-feira, outubro 31, 2017

Quando a Morte nos Cerca [Joelma]


“Querida, pegue meu caderno... está naquela gaveta...”

Eu sei que isso vai lhe parecer loucura, apenas leia.

A voz da vovó me acordou, não de sobressalto, mas com estranhamento, demorei alguns minutos, primeiro na tentativa de fazê-la voltar a dormir, depois para compreender o que dizia, não fazia ideia de que caderno de anotações era esse ao qual ela se referia. Você sabe muito bem como ela estava nos últimos dias, na verdade ela piorou muito depois que a viu pela última vez, mas isso foi apenas o começo do fim.

Ela tinha escondido por anos uma espécie de diário, tinha a capa de couro, na verdade era isso, uma capa de couro fino que guardava jornais, papeis com anotações, números de telefone e endereços, embalagens de doces, ingressos de cinema, uma infinidade de fotos, e a minha história, que ela deixou como gran finale da história dela.

“Hoje é minha última noite com você querida, obrigado minha pequena por permanecer ao meu lado, mas eu já estou mais do lado de lá do vale do que deste... preciso lhe contar sobre seus pais...”

Eu nunca havia lhe pedido para contar sobre eles, mas sabia que esse dia chegaria, talvez esperasse, eu me lembro de voltarmos da escola na adolescência e enquanto compartilhávamos nossos dias, nossos amores de juventude, eu me pegava pensando: será que hoje, ao sentarmos à mesa ela olhará em meus olhos e me dirá como meus pais se conheceram, como namoraram, o dia do casamento... mas esse dia nunca chegou.

“Eu amei tanto seu vovô, ainda o amo, hoje ele sentou-se à cama comigo e disse que voltaria mais tarde buscar-me... a maldade do mundo nos cerca, a nossa volta existe uma batalha invisível... um homem tirou a vida do seu avô, meu amor.”

Isso me abalou! No caderno de couro havia um endereço, que não existe mais, estava escrito pela letra do vovô, ele era bombeiro e atendeu um chamado, mas um chamado da polícia, anotou às pressas o endereço e partiu com seus companheiros para a retirada de corpos em um poço.


A foto do poço estava ali, em minha mãos, a morte no corpo de três mulheres sugou a vida dele. Enquanto eles faziam a remoção dos corpos um tiro seco foi ouvido no interior da residência. Os policiais ainda viram o sorriso no rosto do homem com o peito aberto pelo disparo, sorriso que transformou-se no mais aterrorizante grito de horror e morte.

Este homem havia matado a própria mãe e duas irmãs, ele as envenenou com sonífero e disparou contra elas, não puderam se defender. Não era a hora delas, a mais jovem segurou com as mãos de sua alma as mãos salvadoras da alma do vovô, que dias depois foi levado.

Meu pai era um rapaz na época. Nunca soube disto, vovó não conseguiu encontrar o momento certo para lhe contar, como fez comigo, pois a vida do papai e da mamãe também foram ceifadas na lâmina afiada da morte antes da hora.
Mamãe tinha um bom emprego no banco quando conheceu seu amor, ele era segurança bancário, dizem que foi amor à primeira vista, eles se apaixonaram no primeiro dia de trabalho dele naquela agência. Quando ela foi promovida e transferida da agência para os escritórios do banco, ele conseguiu a função de ascensorista no mesmo prédio que ela.

Eu havia completado 03 anos e você era um bebê.

Papai ouviu gritos ecoando pelo prédio, e já ouvia passou apressados pelas escadas, na verdade permaneceu estático e em silêncio por alguns minutos na tentativa de compreender o que estava ocorrendo. Logo isso foi quebrado. Várias pessoas surgiram no fim das escadas gritando que o prédio estava em chamas. Correu ao telefone. Chamou os bombeiros. Foi salvar seu amor.

O elevador estava sendo chamado em vários andares, e o espirito de bombeiro do vovô tomou conta dele quando percebeu que as pessoas sozinhas não conseguiriam se salvar. O primeiro andar em que o elevador parou estava tomado de fumaça, uma fumaça grossa e escura, ele apenas ouvia gritos, algumas pessoas conseguiram entrar no elevador. Saiu no corredor e arrastou mais algumas para dentro e desceu.

Subiu novamente, ao abrir as portas de aço viu passar pelo corredor um homem em chamas, e na sua frente um corpo derretia no piso de mármore. Não poderia ficar ali. Seu coração aos pulos o fez apertar o andar de sua mulher, mas o elevador parou antes. Outras pessoas foram socorridas.

Subiu e desceu incontáveis vezes, até conseguir chegar ao andar onde ela estava. Quando as portas se abriram percebeu que apenas uma fresta da entrada estava no andar do prédio, um espaço pelo qual ele não poderia passar, sentiu as solas de borracha da sua bota derretendo dentro do elevador. Ela estava viva, ele sabia disso e começou a gritar por seu nome, no meio das chamas ela surgiu e segurou suas mãos até o fim.

“Ela queria ser atriz, andava com seu pai em um carro alugado para festas, era um carro conversível, eles encenavam trechos de filmes que assistiam no cinema, e tinham como espectadores as estrelas... aquilo era uma bobagem, mas uma bobagem tão linda... entende? Nunca houve dor para eles...”

Ela conseguiu, realizou seu sonho de ser atriz, fez uma participação num filme, apenas um reflexo, mas eu a vi, todos viram. Ela estava ali com seu sorriso e beleza, roubando a cena: