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terça-feira, dezembro 22, 2015

Um conto de Natal [2015]

O ventre de José

Abriu seus olhos de súbito. A respiração de Maria o acordara. Não tinha coragem de olhar na direção de sua companheira. Ainda estava olhando para a marquise que os cobria timidamente quando ouviu algo. Outra respiração. Outras. Os cachorros. Assistindo. Ela precisava dele. Coragem José. É hoje.

Ainda era madrugada e ele havia previsto um dia tranquilo para os dois depois de semanas tão luminosas e barulhentas. Primeiro segurou a mão de sua linda Maria e disse que estava com ela, ela lhe sorriu, mas gemia... levemente...  e suava em bicas. Seus lábios esbranquiçados destoavam de sua pele negra.

Colocou-a em seu carrinho de coletar papelão e começou a levá-la para um hospital, as rodas de motocicleta, que sua Maria lhe dera de presente surpresa, sustentavam muitos quilos todos os dias, dos lados via-se claramente triângulos de sinalização pendurados, na traseira uma placa com o dizer “Deus é fiel” e na frente José. Puxando. Abria o caminho na madrugada quente e seca de dezembro.

Avistou um orelhão, mas quem o atenderia; quem ouviria sua voz e sua súplica? Seus braços tremiam e suas pernas fraquejavam, as quatro moringas, penduradas por barbantes, na grande alça quadrada de aço do seu carrinho estavam vazias, lógico, afinal, água era um luxo do qual eles disporiam apenas depois de uma longa jornada que não se realizará mais.

O céu torna-se rapidamente num lindo azul, bem claro. Os pássaros se agitam nas árvores, criando uma bela chuva de flores amarelas e pequenas, ele sente a maciez que o tapete cria ao passar com o carrinho. Força. Rápido.

Um grito. Os cachorros uivam. Dois gritos. Não podia continuar a puxar o carrinho de costas para o ocorrido no interior daquela manjedoura tão singular. Parou. Entrou também e deitado ao seu lado a abraçou. Pode sentir o cravar das unhas de Maria em seu peito e um silencioso deslizar de suas mãos seguido de quase um desmaio.

Levantou-se e viu uma pequena criatura sendo lambida freneticamente pelos cachorros, tirou-os com cuidado e pegou a criança em seus braços. Maria os olhava, transpassada a alma por uma espada de dor e fome e antes que ela desmaiasse, José lhe disse:

__ É um menino...

Sorrisos.
 Latidos.

      Um carrinho de reciclagem chega à porta do hospital. 



sexta-feira, novembro 20, 2015

Por que devemos ter consciência negra?

Por que devemos ter consciência negra?

É muito comum nesta época do ano ouvir pessoas, que não demonstram real interesse pela necessidade do próximo, afirmarem que não é necessária consciência negra, alguns afirmam que é necessária “consciência humana”, pois bem, a afirmação está em parte correta, devemos sim ter consciência humana, mas devemos ter também ter consciência negra, principalmente se partirmos da ideia de que consciência negra é o compromisso de lutarmos pela consciência humana, compromisso de igualdade humana, luta pelo fim do preconceito racial, religioso e territorial que está há séculos impregnando nosso mundo, nosso continente, nosso país, nosso município, nosso bairro, nossa rua e nossa casa!
Para entendermos o que é consciência negra temos que retirar a venda branca que cobre nossos olhos e olhares, elaborar uma analise crítica da nossa história, nosso comportamento e nosso discurso ideológico.

Ao tratar desse assunto é importante compreender e reconhecer o genocídio histórico travado pelos brancos e suas instituições. Por séculos, negro era ”coisa”. (...) A igreja que sempre foi um ator político e social relevante no Brasil, optou por execrar não apenas o negro como toda sua rica cultura. Os cidadãos, melhor dizendo os brancos, matavam, estupravam, exploravam sua força de trabalho em demasia, vendiam como mercadoria, subjugavam, ridicularizavam e marginalizavam os escravos.

A lei áurea foi e é uma grande mentira em nosso país, uma libertação por força de lei que deixou negros em todo território sem nenhum recurso ou indenização, sem abrigo e sem condições de se sustentar, por esses motivos muitos voltaram a ser escravos ou foram excluídos socialmente onde permanecem até hoje.

Basta olhar ao nosso redor e observar que os negros não possuem os mesmo direitos que os brancos, principalmente as mulheres negras, duplamente deixadas em plano inferior.

Isso não é vitimismo, não é ser pedante em uma causa.
Isso é real.

Não adianta ficarmos revoltados com casos de ataques racistas, pela internet, à celebridades e fecharmos nossos olhos ao que acontece a nossa volta. Quando os casos envolvem pessoas públicas os agressores tendem a sofrer punição. Mas e os tantos anônimos que são ofendidos no seu dia a dia? De acordo com o Mapa da Violência publicado em 2013 pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americano (Cebela), a cada três assassinatos cometidos no Brasil, dois são de jovens negros entre 15 e 24 anos. E devemos parar de achar que isso é acaso!


De nada adianta as inúmeras leis que apoiam a comunidade negra em nosso país, se os habitantes do Brasil não se conscientizarem da necessidade de luta pela igualdade de direitos. Vivemos uma segregação moderna, onde ninguém assume ser preconceituoso, mas muitos agem como tal, é necessário reconhecermos que o poder é branco sim, e que isso deve mudar.

Nossos alunos não aprendem na escola as consequências da escravidão em nosso território, pois em nossas terras foi cometido um dos maiores genocídios da humanidade, pois em 350 anos de escravidão em nosso país mais de 5 milhões de africanos foram sequestrados, violentados, escravizados e a grande maioria foi morta por decorrência da escravidão ou lutando por sua liberdade.

Num total de 258 romances de escritores nacionais 94% dos autores brasileiros são brancos –mesma cor de 92% dos personagens.Pouco mais de 5% de protagonistas negros, e quase sempre apresentados como bandidos, empregados domésticos ou escravos e que, em mais da metade dos casos, morrem assassinados.

Desde começo do ano vemos manifestações organizadas socialmente ou politicamente com vários fins, mas somente nestes dias observamos a ocorrência de uma tragédia, que poderia ter sido muito mais grave, atiradores se infiltraram na marcha das mulheres negras em Brasília, ninguém ficou ferido fisicamente, mas isso nos revela o ferimento social que existe em nosso meio e que devemos combater com todas nossas forças.

Devemos a todo instante lutar contra o racismo, contra essa ideia monstruosa de que a cultura negra é inferior. Nós somos frutos da cultura negra.

O dia da consciência negra é celebrado no dia 20 de novembro, pois é a data da morte de Zumbi dos Palmares, que ao lado de sua esposa Dandara lutaram pela liberdade dos negros e foram mortos por esta causa. 

Saiba mais sobre Zumbi dos Palmares



Saiba mais sobre Dandara dos Palmares







Informem-se (fontes):










sábado, outubro 31, 2015

Se me pedissem pra fazer um poema [Eu não faria]

Se me pedissem pra fazer um poema [Eu não faria]


Se me pedissem pra falar de saudade,
Eu falaria.
Se me pedissem...
Pois, sem motivo, não me abriria.

Se me pedissem pra falar de saudade,
Acho que mentiria.
Falaria sobre os que ficaram,
Sobre os que se foram, coragem, não teria...

Se eu falasse de saudade,
Fingiria não lembrar anos perfeitos
De qualquer idade,
Onde não havia defeitos.

Esqueceria a saudade do primeiro beijo
Do primeiro entrelaçar de dedos
De ter vencido os medos
De saber aquele esconderijo

Omitiria as risadas sem motivo
As fotos reveladas
As lágrimas veladas
Talvez isto me deixasse emotivo

Não falaria também de...

_ Desculpe... Mas você disse que não falaria nada disso...

_ ...

_ Acredito nisso que vinha falando, mas disse que falaria da saudade que fica... Dos que ficaram.

_ Pois tudo isso ficou também, todos ficaram, aqueles rostos que vezes passam por nós, quase como que estranhos, mas que dia estiveram ali, do seu lado, no seu colo, na sua vida... Mostra que a saudade em algum lugar falhou. Mostra que nem sempre somos dignos dela, nem de ser alvo nem ser flecha desse sentimento tão intenso e vazio...

_ vazio?

_ Sim, a saudade é vazia, pois é justamente um nada, que um dia, em algum lugar, em algum olhar, em algum falar, foi tudo... Talvez a saudade mais doída seja aquela que você sabe que ainda vai sentir...

_ Quando vê seu irmão fazendo um plano de vida que vai afastá-los...

_ Exatamente, quando os sonhos nos afastam um do outro, e existe um momento que você percebe que essa é a trama da vida, ela se move, abrindo espaços, que são preenchidos pela saudade...

_ Nada substitui a saudade?

_ Nada.





quarta-feira, outubro 21, 2015

E agora Marty Macfly?

E agora Macfly?

A viagem acabou
seu filho está preso
foi enganado
sua família também.

E agora Macfly, 
você pode ir lá
chegar ao futuro
essa história mudar

Não precisamos de ruas
não envelhecemos
a comida é reidratada
o tênis [ainda] é Nike.

Os vilões são parvos
mas seu filho também
sua filha é mais
e a culpa é sua!

Você que compra
essa revista de jogos
quer voltar ao passado 
e mudar o futuro?

Não percebe Macfly
não precisa voltar
para isto mudar
aqui já [ainda] somos assim

Sem peso na consciência 
Macfly errou
eu errei
eles erraram

Você Macfly
é o garoto certo
no dia certo
em 1985.

Mas pensa ser
o garoto 
e o dia 
errados... igual nós.

E agora Macfly
você foi
voltou 
retornou 
e nada mudou

Este é seu legado
para nós deixado
por ti e por Doc
"O futuro ainda não aconteceu".



sexta-feira, julho 31, 2015

Lampião [Entenda o verdadeiro Cangaço]

LAMPIÃO, ENTENDA O POVO POR TRÁS DO HOMEM ENTENDA O HOMEM À FRENTE DE UM POVO.

Findando o mês de julho relembramos um dos maiores mitos da historia brasileira: Antonio Virgulino Ferreira, O Lampião, homem que deixou sua marca num movimento como Cangaço. Muitas inverdades, tanto para o bem quanto para o mal, são proferidas em relação ao cangaceiro mais conhecido, bem como ao movimento de cangaço de forma geral, por isso é necessário conhecer melhor sobre o assunto.

O cangaço é um movimento histórico de resistência e luta dos mais pobres para sobreviver contra o poder dos mais ricos, e mesmo que possua em suas linhas momentos de violência deve ser compreendido como positivo e jamais deve ser comparado a movimentos como o atual tráfico de drogas ou determinadas realidades na periferia, principalmente nos grandes centros, ou mesmo movimentos organizados como os Sem-terra.

Justamente por ser um movimento libertário dos mais pobres e explorados que o cangaço sofreu perseguições da imprensa na época, onde foram criadas histórias falsas que até hoje são disseminadas em nossa sociedade, numa busca desenfreada de deslegitimar o movimento, assim como ocorre com muitos outros movimentos de resistência no Brasil e no mundo.

É evidente que muitos casos de violência foram cometidos por cangaceiros, mas da mesma maneira, mas em proporção muito maior sofreram ataques abusivos, bem como o povo em geral, da Volante, milícia apoiada abertamente pelos governos na época.

Lampião que nasceu em Pernambuco teve seu pai assassinado em 1920 pela polícia a mando de coronéis quando ainda criança, sua mãe morrerá 19 dias antes vítima de infarto. O sertanejo então se revoltou com a realidade e partiu em busca de seus inimigos. Sua história hoje é vista como um misto de romance, aventura, violência, amor e ódio.

Para a neta de Lampião, a historiadora Vera Ferreira, o rótulo de ‘bandido ou herói’ é muito simplista. “Eu costumo dizer que cangaceiros foram homens que disseram não a situação, porque se nós olharmos o passado do cangaço e analisá-lo somos remetidos para uma época social, econômico e cultural de muita pobreza no sertão, como ainda hoje é. Lá não existia uma autoridade, o sertanejo passava necessidades e ainda era explorado. Aí que o cangaço entra e se firma pela ausência de autoridade”, aponta.


Ainda sobre a questão de herói ou bandido, veja esta afirmação reflexiva de Washington Rodrigues Correa, sobrinho-neto de Pedro de Cândido – o coiteiro de Lampião que traiu o cangaceiro e revelou (forçado pelas milícias, dizem) o local onde ele e seu bando acampavam, na Grota do Angico – Diga lá, de coração: Lampião foi um herói ou um bandido?” Sua resposta, digna de muita reflexão, não podia ser mais inquietante: “Lampião foi simplesmente um brasileiro.”

Antes de Lampião o cangaço era apenas um fenômeno regional, limitado ao Nordeste do Brasil. De acordo com a neta do cangaceiro, o restante do país não se incomodava com o que não lhe dizia respeito. (...)Vera diz que Lampião representa o momento de maior importância do cangaço e que foi a partir de movimentos como Canudos e o cangaço que o resto do país percebeu a realidade do sertão. “O movimento do cangaço não era percebido pelo resto do país e a partir do momento em que o Lampião se torna famoso pelos seus feitos, a realidade nordestina passa a ser mais vista, após sua morte não houve mais nenhum movimento que fosse caracterizado pela rebeldia e contestação no Nordeste”, conta.

(...) Lampião era um revoltado e não um revolucionário. Como tal, não tinha uma visão mais ampla da sociedade (...). É bem provável que se Lampião tivesse nascido alguns anos antes, seguisse Antonio Conselheiro pelos caminhos do sertão até Canudos, ou, se tivesse nascido escravo na velha Roma ao tempo de Spartacus, talvez parceiro desse libertador. Nascido na segunda metade do século passado, provavelmente, seria encontrado liderando uma tomada de terra ou dirigindo um dos movimentos de camponeses sem terra.
Tantos condicionantes servem para entendermos que a guerra dos escravos, as guerras camponesas e o cangaço têm a mesma base: a opressão e a exploração da maioria do povo por um punhado de parasitas.

Conheça mais da verdadeira vida de Lampião, Maria Bonita e os cangaceiros, bem como seus verdadeiros costumes, sua relação com a sociedade na época, com as mulheres, a religião e os políticos no site:


Pesquisem sempre em fontes confiáveis e de referencia.


Fontes: (Além minha cabeça fervente, usei textos das seguintes matérias na composição deste post)





sexta-feira, julho 03, 2015

Entre Rolas e Autópsias [nós]

Entre rolas e invasão de privacidade mesmo depois de falecido, percebemos a falta de humanidade na sociedade atual e também o quanto a ideologia de liberdade de expressão confunde-se facilmente com falta de respeito.

Após receber duras criticas de Silas Malafaia, o jornalista Boechat, da rede Bandeirantes, proferiu uma das mais recentes pérolas da nossa mídia podre: Vai procurar uma rola. Tal provérbio foi disseminado pelas redes sociais como uma forma de lavar a alma, ou a honra, ou até a mesmo a luta dos homossexuais pela garantia dos seus direitos fundamentais como cidadãos, tão contestados pelo pastor.

Mas, foi exatamente nisso que o jornalista deu um tiro no pé na luta LGBT em nosso país, pois a expressão “procurar um rola” nada mais fez do que denegrir, assim como xingamentos e piadas a respeito, a identidade sexual de muitos em nosso país.

A expressão utilizada em nada auxiliou na luta pelos direitos de todos, pelo contrário, apenas gerou mais e mais discurso de ódio por todos os lados; não é possível que alguma parcela da população ainda acredite que esse tipo de postura seja digna de aplausos.

Pensando bem, não é de se duvidar que acreditemos que tais ofensas sejam positivas, afinal nem os mortos conseguimos respeitar mais, nem as fatalidades passam em branco do nosso esgoto branco, que são nossas redes sociais e rodas de conversa. Nós criamos uma rotina de pão e circo dentro de nossas próprias casas através das mídias e nem percebemos isso.

A cultura de que podemos falar o que quiser, onde quiser e como desejamos afasta o senso critico, tão necessário, de nossas mentes, há alguns num acidente, como tantos outros em nosso país, duas vidas foram ceifadas: Cristiano Araújo e Allana Moraes, até então, mais um tragédia envolvendo um artista, na qual a mídia executaria bem seu papel de urubu.

Contudo não está sendo mais necessário que a mídia aberta cumpra este papel, pois nós mesmos o realizamos: eis que o vídeo da autopsia da cantor falecido foi distribuído e compartilhado por milhões nas redes sociais mais variadas, mais um exemplo clássico de como nos importamos com nossos semelhantes.

Sem contar que, esses tipos de vídeos relacionados a acidentes perturbam a paz de familiares de acidentados todos os dias, este caso especifico apenas trouxe à luz um hábito de muitas e muitas pessoas por aí...

Não importa o que diz a home Page do ser supremo FaceBook, nós não podemos compartilhar o que quisermos.

Beijos no cérebro.


quinta-feira, abril 23, 2015

Emoção no metrô [Vídeo]

Desconhecido compra as 140 flores que mulher vendia no metrô e pede que distribua a todos do vagão



A mulher chora muito, e logo depois começa a falar: "Flores Grátis!"

Ainda bem que podemos conhecer histórias incríveis de gentileza através de pequenos vídeos gravados de forma amadora por celulares ao redor do mundo.

Graças ao post no Reddit, um fato que aconteceu há quase dois está ganhando a repercussão que merece, trata-se de um vídeo emocionante que mostra uma mulher que vende flores no metrô de Nova York por US$ 1 cada.

Um desconhecido pergunta a ela sobre as rosas e descobre que a mulher tem 140 flores. "Então, eu vou te dar US $ 140," o homem diz, acrescentando: "Mas você tem que me faça um favor, você tem que dar essas flores".

"Não venda nenhuma delas, distribua a todos do trem", diz o homem. A mulher começa a chorar, mas o homem insiste: "Hoje é um dia feliz." Eles dão um breve aperto de mão e o homem deixa o vagão. A mulher chora muito, e logo depois começa a falar:"Flores Grátis!".


assista o vídeo:


quarta-feira, abril 22, 2015

Mano Brown: 45 anos. [entrevista]

“Eu questiono porque não basta ser”

Entrevista de Mano Brown, líder do Racionais MC's, à CULT
Endrigo Chiri Braz

Foto: Daryan Dornelles

CULT: Qual sua memória musical mais antiga, o primeiro som que lembra que bateu forte quando era moleque?
MANO BROWN: Acho que foi aquele som que eu fiz “Vida Loka − Parte 1” [musica do disco Nada como um dia após o outro dia, de 2002] em cima, do Liverpool Express, “You are my love”. É um som que lembro que gostei há bastante tempo.
Que idade você tinha?
Tinha uns seis anos, estava no colégio interno, por isso que eu lembrei.
E que tipo de som rolava na sua casa? Era uma casa musical?
Na minha casa não tinha aparelho de som nessa fase, e eu estava no colégio interno. Quando voltei pra casa, minha mãe tinha um dois em um, era AM e toca-discos, pequenininho. Faz tempo isso aí… nos anos 70 a gente não tinha quase nada.
Com quantos anos você voltou pra casa?
Com oito e meio, quase nove.
E que extrato tira desse período de colégio interno?
Eu tenho TOC de arrumação até hoje [risos]. Se o tênis estiver torto, tenho que arrumar. A roupa, a toalha, a roupa de cama, tem que estar tudo dobrado. É herança de lá isso aí.
Por que o Pedro Paulo decidiu virar rapper?
Não foi bem uma decisão, começou como uma brincadeira. Eu estava sem fazer nada, desempregado e tal, e não tinha nada que chamasse a atenção de ninguém também. Quando começou essa onda de rap, nos bailes, a gente começou a ouvir falar nas rádios, e ouvi falar que estava tendo um concurso, mas não participei. Só fui participar do terceiro concurso, quando fiz minha primeira letra. Era uma grande brincadeira, coisa de festa, de moleque. Uma coisa de você poder subir no palco e chamar a atenção das minas, no máximo; não tinha uma pretensão de “ah, vou fazer a revolução”. Com dezessete pra dezoito anos você não pensa nessas coisas, não naquela época.
Quanto tempo depois surgiu o Mano Brown pra valer?
Não muito depois… Eu também não tinha muito a perder, e nem tinha pra onde ir, certo? Com a terceira música que fiz ganhei um concurso no salão, e despertou uma certa cobiça a partir daí, de pensar um pouco maior. Ganhar o concurso era pouca coisa mas também não era nada. Depois a gente estava na São Bento [estação do metrô de São Paulo que foi berço do hip hop brasileiro no final dos anos 1980] e fomos convidado pra entrar no lugar de um cara que tinha faltado na gravação de uma fita demo. Eu cantava sempre no latão da São Bento, comecei a fazer fama ali, aí o cara da demo chegou perguntando: “Quem são os caras do Capão que rimam pra caralho?”. Aí apontaram pra mim e foi assim que aconteceu. A gente foi num apartamento no Edifício Copan e chegando lá estavam o KL Jay, o Edi Rock, Os Gêmeos, que eram uma dupla de rap [famosa dupla de grafiteiros paulistanos], e a gente gravou aquela demo, que não foi pra frente. Na época eu cantava com o Ice Blue, e o Edi Rock e o KL Jay eram uma outra dupla.
E sua mãe? No começo ela gostava?
Escondi da minha mãe um bom tempo. Aí passou um tempão, apareci em casa com um disco gravado e mostrei pra ela, que nem sabia que eu cantava.
Você já tinha parado de estudar nessa época?
Já tinha. Fazia tempo.
Então não é que você estava trocando uma coisa pela outra…
É. Eu podia estar fazendo coisa errada, né? Daí eu fui gravar música. Quando minha mãe viu minha cara no disco, ela não acreditou.
Você achava que o Racionais chegaria onde está ou foi muito além?
Foi além, mas eu sabia que ia ser foda. Eu sabia como ia cantar cada ideia, tal batida, como ia parecer o som, só não sabia que ia ficar do tamanho que ficou. Eu sabia que quando a gente chegasse com aquela ideia, seríamos os primeiros, e que quando as pessoas parassem pra ouvir, não iam largar mais. E foi assim, mas não que nem é hoje, que realmente às vezes me assusta. Não esperava mesmo… mas lá atrás, em 90, sabia que não tinha ninguém como nós no Brasil. A gente não era nada mas a gente era diferente de todo mundo. Eu sabia que se levasse a sério, se desse continuidade, poderia ser alguma coisa, tinha essa noção.
E quanto tempo depois começou a ganhar dinheiro?
Eu vi dinheiro mesmo com “Homem na estrada”. Antes disso era couro de rato, trocando moedas. Os carros quebravam pra caralho, tudo o que ganhava, gastava. E o Brasil era difícil também. A gravadora era pequena, a gente vivia com problema financeiro sério, que nem o Santos [Futebol Clube, time do coração de Brown]. Quando lançamos “Homem na estrada” e “Fim de semana no parque” [do disco Raio-X Brasil, de 1993] que realmente virou outra coisa. Foi quando a gente mudou os temas, parei de falar só do movimento negro pra falar mais da periferia. Aí já estava perto do que calculei. Não onde está hoje, mas “Homem na estrada” estava perto do que eu calculei naquela época. Eu morava num barraquinho aqui nessa rua, numa casinha de um cômodo e meio. Um dia saí na rua e estava tocando “Fim de semana no parque” em três casas diferentes. Minha música… na minha rua… Alguma coisa estava errada, entendeu, ou estava começando a ficar certa. Ali cresceu.
E como vocês estão planejando comemorar os vinte e cinco anos do Racionais?
Eu não pensava em comemorar nada, mas também sou obrigado a reconhecer que vinte e cinco anos são vinte e cinco anos; vinte e seis já é outra fita, não é a mesma coisa. Então vamos comemorar, tá bom.
O disco novo do Racionais sai este ano ainda?
Eu tenho muita música fora do Racionais, e talvez tenha que apelar para esse arquivo para colocar no disco do grupo. Tem bastante música para o meu disco solo, algumas servem para o Racionais, mas vai contrariar muito a lógica.
Por quê? Seu disco solo está indo por outra linha?
Não quero ficar chato, morou?
Tem previsão de lançamento?
O Racionais está na frente, tem prioridade no momento. E o Racionais exige um pouco mais, vai precisar dar uma atenção.
Os outros integrantes do grupo também têm seus projetos solos. É bom pro Racionais em que sentido?
Fortalece o individual, fortalece a pessoa. E grupo é uma parada ótima para você esconder falhas também. Todo mundo é capaz de se sustentar fora do grupo. É bom isso, essa independência dos quatro.
E como está o esquema de produção hoje? Está mais fácil trabalhar, produzir, gravar, fazer show desde a abertura da Boogie Naipe Produções [escritório próprio criado em 2009 para cuidar da produção do grupo]?
Está mais organizado. Mais fácil não, a luta é a mesma, mas com mais organização você consegue enfrentar os adversários mais fortes. Os resultados são melhores. Por exemplo, a gente fez duas festas no Rio de Janeiro, na Fundição Progresso, com cinco mil pessoas cada. Mas a gente podia se foder também, podia não ir ninguém, mil pessoas só, fracasso. E fracassar no Rio decreta o fim, porque é dali para frente. Igual a São Paulo. São cidades formadoras de opinião, e só com organização você consegue fazer isso acontecer. O Racionais foi vítima de muita desorganização ao longo dos anos.
A ideia de centralizar é justamente pra não passar nervoso na mão dos outros?
Para organizar, na verdade. É um trabalho, eu gostaria que fosse aquela liberdade do começo, mas na verdade os tempos mudaram. Tem muita gente que espera por mim e espera de mim.
Isso te cansa? Às vezes queria ser só o Pedro Paulo?
Queria te responder com sinceridade, deixa eu pensar [pausa]. Às vezes sim, mas o Pedro Paulo talvez não estivesse vivo se não fosse o rap, então também não posso ter essa ingratidão. O Pedro Paulo está vivo até hoje por causa de rap. Quando eu conheci o rap, o Pedro Paulo estava fadado a morrer. E na verdade o Pedro Paulo nunca deixou de existir, mas ele poderia ter morrido em 1988.
No sentido de “era o rap ou o crime”?
É, exatamente. Não tinha para onde correr. O crime já estava virando uma coisa normal – meus amigos faziam parte daquilo. E, mano, se você vê os amigos em quem confia no barato, você acaba entrando. Se a primeira dá certo, você quer ir na segunda e aí você vai ficando frio, desacreditado, essa é a circunstância.
Você está mais confortável na posição de referência pra molecada da periferia…
Tem outras referências. Eu posso ser uma, mas tem muitas outras. Mais de cem, mil.
Isso te incomodava antes. Está mais tranquilo hoje em dia?
Não é que me incomodava, eu não gosto é da cegueira. Você tem que estar com a visão 3D, entendeu? Todas aquelas ideias do começo dos anos 1990 foram muito importantes, elas são importantes, mas dali pra frente é cada um com seus problemas. Não pode ter esse negócio de grupo de rap ser ONG. A responsabilidade é de todos. Cada um tem que ter responsabilidade sobre si, então se a gente ficar nessa ideia de paternalismo de novo, “ah, vem que eu te ajudo, te dou cesta básica, te dou leite…”, isso aí é o que já se faz. Isso está errado, entendeu? Tira as pessoas da condição de igualdade… A condição de igual, de se sentir igual, é que traz liberdade às pessoas. Mesmo que esteja duro, não posso me sentir menos do que você porque me deu um quilo de açúcar, que merda…  Não tinha que estar ninguém dando açúcar pra ninguém. É o mínimo que tinha que ter.
Seu processo de composição mudou nesses vinte e cinco anos?
Eu componho aqui, com vinte caras fumando maconha e conversando junto. Já compus muita música também na cama da minha casa, sozinho. Componho de qualquer forma.
Mesmo com bagunça?
Bagunça vira música para mim, vira letra.
Você está satisfeito com as coisas que conquistou até agora?
Eu não sei o que eu conquistei. Eu sei o que eu fiz, eu estou bem, não me arrependo de nada não.
E no profissional?
No profissional dava para ter crescido mais, dado um passo além, mas era tudo muito atrasado, muito difícil aqui no Brasil. Era tudo muito turvo. Não tinha uma grande proposta que me confortasse. Tudo o que foi me oferecido ao longo da minha carreira foi perigoso. Não vinha dinheiro de uma fonte boa, tudo de fonte que eu não queria acumular.
Agora seria uma boa hora para…
Ó parceiro, vou te falar, hoje em dia já não penso nisso. Penso que eu preciso trabalhar, certo? Trabalhando eu como, bebo, durmo, visto e já era. Eu não penso na carga, no símbolo, no status de ficar rico. Mas sempre existiu essa possibilidade, e se eu não estou é porque não dei a atenção devida. Houve condições, mas não era aquele dinheiro que me orgulharia de ter ganhado. Eu prefiro vender sapatos, vender calça jeans, vender pão.
Trabalhar com coisas mais palpáveis?
Coisas que não sejam filosóficas, nem ideológicas.
Viver de arte é sofrido?
Não deveria ser. Por exemplo, se eu fosse um sambista, viveria de arte sem muita dor de cabeça, arte pela arte, e é muito respeitável por sinal, tá ligado? Como é o Fundo de Quintal, o Zeca [Pagodinho], o Revelação. São muito respeitáveis e não vivem nessa rota de colisão com filosofia. Eles vivem filosofias próprias, não deixaram que ninguém se apoderasse deles. Eles não quiseram ser a luz da humanidade. Houve ali um momento que foi colocado que o rap que tinha que ser a luz da quebrada, a luz da periferia, a luz dos caras. Uma coisa que veio de fora para dentro, que não foi denominada por nós. A mídia falou, a imprensa falou, os fãs falaram. Eu sempre gostei mais de ser o bandido do que ser o líder nas minhas músicas. Mais como um ombro do que como um mentor. Nada de ser mentor, sempre quis ser ombro, braço. Sempre quis ser braço.
Você acha que isso podou o rap de certa forma, tirou a liberdade de experimentar outras coisas?
Sim, mas politicamente era prioridade na época. O rap foi usado, e o Racionais de certa forma também foram.
Com todo o cuidado que vocês tinham?
É, fomos usados pela revolução, pela causa, a gente se deixou usar, entende?
E os frutos disso nem sempre são bons?
O fruto disso é a oposição, hoje aparece uns caras dizendo que a gente é do governo, porque a gente participou daquilo que era uma prioridade na época. Hoje em dia eu não sei se é prioridade. Não sei se é prioridade reeleger o PT. Não é uma coisa que a gente está ali de corpo e alma, mas na época era. Faça ou morra, tá ligado? Era isso, questão de prioridade, de praticidade. Era necessário pôr alguém lá que falasse algumas coisas que a gente pensava, e esse alguém era o Lula.
E agora?
Agora somos acusados de ser “governo”. Eu já sabia que isso ia acontecer. Lógico que não esperava que viesse do Lobão, que era um cara que estava do mesmo lado naquela época. Eu não sei o que revoltou ele, com certeza não fui eu, não devo nada pra ele. Não faço parte do governo. Eu participei porque era prioridade para o povo negro que o Lula ganhasse.
E agora não é mais prioridade o PT ganhar?

Não, já não é prioridade. Eu acho que as pessoas têm o direito de questionar mesmo. Eu não vou me deixar cair nessa, de defender antigas filosofias. Eu acho que filosofia existe para ser questionada.
O Lula foi bom nos oito anos que ele…
Foi muito bom.
Por quê?
Eu acho que o mundo precisava disso, e o Brasil experimentou isso. O Obama ganhou lá; e o Lula tinha ganhado aqui, certo? Depois uma mulher foi presidente. Mudanças drásticas! Num país machista uma mulher ganhar. Num país racista um negro ganhar. Aí o Lula, que era um cara limitado, semianalfabeto − tinha essa lenda que o Lula era analfabeto − ganhou. Era impossível o Lula ganhar, entendeu? Ele tinha perdido três eleições direto. Eu participei de todas. Era prioridade o Lula ganhar porque em 2002 era outro Brasil. Era prioridade. Tinha que ganhar. Era vital.
E qual deveria ser nossa prioridade política agora? Isto é, a do povo que quer mudança.
O povo tem que tomar cuidado para não ser manipulado nesse ímpeto político. Querer mudança é muito importante, mas tem que tomar cuidado para não ser manipulado. Porque, realmente, o povo quando quer, muda mesmo. A lição que eu tirei dos protestos do ano passado foi a que existe um povo. Existe um perigo, que pode realmente invadir Brasília. Pode acontecer. Era uma lenda que você imaginava rolar na Argentina, mas no Brasil nunca. E o Brasil mostrou que se quiser, faz. Então é bom todos ficarem bem espertos com isso. Mas tem que tomar cuidado para o povo não ser manipulado, tirar um do cargo pra colocar outro no lugar, virar massa de manobra. Como o Racionais também pode ser, se nos deixarmos ser, entendeu?
Cada vez mais esportistas e artistas estão indo pra Brasília, se envolvendo na atuação política direta. Acha que é um caminho possível ou existem outros interesses envolvidos, como dinheiro?
Eu não acredito que ninguém faça mais nada só por dinheiro. Não é só o dinheiro que conta hoje. É influência, é fazer parte. As pessoas estão lutando pra fazer parte das coisas, né? Nos dias de hoje as lentes estão viradas para essas pessoas mesmo. Então está todo mundo olhando para elas, e a informação é muito rápida. Ter um dinheiro indevido na mão é muito perigoso para qualquer um: pra rapper, pra sambista, pra jogador… Não é só o dinheiro. É estar perto. Os cara chamam de network. É o caldeirão da bruxa. É o lobby, a antiga panela. Eu tenho um pouco de receio disso. Nunca quis estar perto do governo por isso. Fui chamado para muitas reuniões do governo e nunca fui em nenhuma. Não foi pra não se misturar mesmo… É que meu lugar não é lá, entendeu? Mas eu não escondo: a gente se posicionou a favor da eleição do Lula e ficou marcado por isso. Porque o Lula ganhou, fez a diferença e muita gente não gosta do que ele fez. Esses dias eu vi na internet: “É, o Mano Brown votou na Dilma!”. Eu votei na Dilma mesmo. Eu acho que oitenta e cinco porcento da população na época votou na Dilma, mas tem quarenta porcento que vai dizer agora que não votou… Como assim?
E votaria na Dilma de novo?
Questionaria. Ouviria os que estão em volta de mim. Eu ia parar para ouvir.
Em 2007, no “Roda Viva”, você disse que a maioria já estava a favor do povo, que a periferia é a maioria. Eu queria saber de você o que é que falta ainda? Se envolver em Brasília, criar um partido político?
É fazer muito mais fora de Brasília. A sociedade civil, as pessoas, os trabalhadores, os formadores de opinião, os jornalistas, os que fazem, os que escrevem, os que emitem opiniões, que têm contato com o público, eles têm força pra fazer o que o governo não faz. Verdade reta? É isso que tem que ser feito. Todo mundo sabe da sua obrigação. Esperar do governo é ultrapassado. Eu acho que o que tem que fazer é exigir do governo, não esperar. Se a sociedade souber o que quer, dificilmente vai ser enganada. Eu acho que o brasileiro flerta com muita coisa e não sabe exatamente o que quer. O brasileiro acabou de se descobrir, está consumindo pra caralho, está vivendo um momento que nunca viveu, entende? Se a sociedade quer mesmo lutar por hospital e escola, por que não se organiza pra pressionar o governo? Por que sobra para alguns caras, alguns estudantes, reclamarem disso? Porque o restante está acomodado.
Mas às vezes não é só uma faísca que precisa para fazer o acomodado se mexer?
Ah! Mas já tiveram várias faíscas. Está tendo faísca agora. Deve ter alguém que tá com o pé na vitrine agora, em algum lugar da cidade.
Mas não gera pressão?
É, tá, mas é isso mesmo? É hospital e escola? Ou são outras coisas e os cara querem pressionar o governo pra tumultuar? Qual o setor da sociedade que está preocupado com hospital e escola mesmo?
Você sentia que as manifestações batiam aqui? Que a molecada da periferia se ligava?
Olha, foi meio confuso… A gente ficava falando sobre isso aqui, se era certo ou não, se ia participar ou não. No começo parecia ser uma coisa bem clara, depois virou de muitos interesses. Muitas insatisfações até. Isso mostrou que o governo não estava tão bem quanto a gente pensava. Mas muitos motins pré-organizados surgiram, esperando pra poder pegar essa carona, e um movimento inocente foi manipulado.
A que conclusão vocês chegaram?
Que estava sendo manipulado. Que existiu uma pureza no começo, mas tinham manipuladores também. Nunca foi fácil, né?
Mas não é melhor isso do que nada?
Lógico. Para acordar, né? Acordou os que achavam que estavam protegidos… Se o povo quiser e tiver uma boa causa, ele vai pra rua e toma. Deu para ver isso. Agora, que não seja para agradar um setor, para tirar um do governo e colocar outro que é igual no lugar dele. Você vai continuar sendo peça.
O que você está achando do pleito desse ano? Acredita em algum candidato?
Eu vou aguardar um pouco…
Conversa com seus filhos sobre isso?
Meus filhos têm opinião formada. Inclusive, acho que eles são até mais informados do que eu sobre política. Eles estudam, né? Estão sempre em contato com estudantes… E no meio que a gente vive é fácil de se alienar, então ter dois filhos estudantes, traz informações a que você não tem acesso.
Como você separa o Pedro Paulo do Mano Brown dentro de casa?
Não existe mais separação… Eles são a mesma pessoa. O Pedro Paulo sem o Mano Brown não estaria vivo, já te falei isso. Eles têm que aceitar o Mano Brown de igual. É a mesma coisa. Eu consigo viver bem esse barato aí. É suave. Eu sou um cara comum em qualquer lugar, não só dentro da minha casa. Eu tenho minha opinião formada, e a teria de qualquer forma. Eu não pago de Mano Brown pra cima de ninguém.
Como a ausência da figura paterna influenciou sua vida?
Ah, aprendi a me defender bem… e que a vida é uma guerra. Não tive quem me protegesse. Vi que eu não era perfeito mesmo, por causa disso, né? Já tinha defeito na raiz. Então eu teria que me ajeitar na vida para ser alguma coisa, para conseguir alguma coisa. Eu tinha que melhorar muito como pessoa. Sempre soube que eu tinha muito defeito.
Você acha que isso te deixou mais arisco? Ou mais ressabiado com as coisas?
Não. Nem mais ressabiado nem mais arisco. Eu não sou nem tão arisco. Eu sou destemido. E não posso dizer que sou um cara ressabiado porque já fui traído. Eu sou um cara sem medo. Não tenho medo do futuro. Não tenho nem medo de ser traído. Eu só quero fazer o que eu faço e já era. Não tenho medo de nada.
Você já pensou em procurar seu pai? Como é que é isso pra você?
O meu pai talvez nem esteja mais vivo, né? Já faz tempo. Acho que meu pai não está vivo há muitos anos.
E isso influencia na criação dos seus filhos?
Meus filhos já nasceram numa casa com pai e mãe. Pai e mãe vividos, de vida sofrida mesmo. Então a gente soube mostrar pra eles que a vida não era um mar de rosas, que é difícil. Minha casa nunca foi de luxo, de coisas caras. É uma casa comum. Se você entrar na casa de qualquer pessoa aqui, é igual. Tem televisão, geladeira, sofá. Então eles foram criados de forma bem comum mesmo. Não teve esse lance de Brown.
Mas você faz questão de deixar o canal da comunicação aberto, especialmente com seu filho?
Eu falo com meu filho do mesmo jeito que eu falo com você. De homem pra homem. Minha filha sim, eu já trato com um pouco mais de cuidado, é mulher e tal… Mas ela é bastante inteligente também. É independente. Então tá suave.
Você pensa no futuro dos seus filhos?
Meus filhos têm que fazer as próprias vidas. Não penso no futuro. Eu não projeto as vidas deles.
Mas você se preocupa com o mundo que está deixando para eles, ou isso é problema deles também?
Problema deles também. Cada um com a sua missão. Não tem essa, eu aprendi que a gente tem que criar o filho para o mundo, e não para a gente. E tem que ser forte, que nem eu sou. Tem que ser guerreiro, saber que as coisas não são fáceis. Aqui é uma guerra.
O rap é um meio machista…
Mas está melhorando…
E muitas vezes quem segura a bronca são as mães, as mulheres, não é uma contradição?
O Brasil é machista, e o rap é retrato do Brasil. Feito para o brasileiro, certo? Machista. Ponto.
E você acha que tem melhorado por quê?
Porque as mulheres estão ocupando espaço. Não é que o homem está cedendo, ele está perdendo. A mulher está avançando. Mas quem cria os caras mimados, fracos, são elas, então as mulheres têm lá sua parcela de culpa dos caras serem assim. Elas estão ocupando espaço porque eles também não estão conseguindo segurar os ímpetos das mulheres. E as mulheres estão chegando. A nova ordem, né? Mulher liberta, né? Mulher moderna. Essa liberdade que estão loucas para ter, estão começando a construir agora.
E você acha bom ou ruim?
Acho bom. Sou a favor das mulheres! Desde que o mundo é mundo o homem esteve no comando da situação. Quem sabe com as mulheres mude. Mulher é mãe, é mais apegada à vida.
Acha que está na hora do rap nacional esquecer os Estados Unidos pra trilhar um caminho mais…
Difícil… Quase impossível.
Por quê?
Porque os Estados Unidos são a torre. O mundo está globalizado, então tudo tem influência americana. Não é só o brasileiro que segue, o mundo inteiro segue. E o negro brasileiro deve muito ao negro americano. Porque quando se fala de rap, se fala de negro, e foi baseado na postura do negro americano que o negro brasileiro começou a reivindicar coisas básicas.
A música negra americana é rica, mas a música negra brasileira é tão ou…
Mais… Mas aí é que está! O poder bélico. O negro americano sempre teve aquela postura combatível, passou a ter dos anos 1960 pra frente. Então isso serviu de inspiração para os negros daqui. Foi um canal pra trazer essa ideia de periferia também, de classe. Aí sai do quesito raça e vai pra classe. É praticamente impossível separar uma coisa da outra. Aí vira uma coisa politizada. Eu nunca abri mão da liberdade da música, de fazer música livre. Nunca gostei de ter que falar disso ou daquilo. Mas que serviu, serviu.
Lá atrás, você esperava gravar com o Jorge Ben um dia?
Esperava. Era uma meta. Eu quando quero uma coisa é foda.
No começo do Racionais vocês sampleavam o Jorge Ben, e muito tempo depois você gravou com ele. Acha que os grupos de hoje estão mais conectados com outros artistas? O Emicida gravou com os sambistas Juçara Marçal e Wilson das Neves recentemente, por exemplo.
É, mas o Emicida já vem com a grife de artista que a gente não tinha. O Emicida tem essa grife de artista. O cara é reconhecido pelos outros músicos. Ele foi reconhecido muito mais rapidamente do que a gente na época.
Mas por causa de vocês também, não?
Não. Por causa dele. Tem músicos da época dele que também ouviram a gente e não deram em nada. Foi inteligência dele. A gente não deu nada pra ele. Ele que aprendeu isso. Ponto dele.
Você acha que, com a ajuda da internet, ele conseguiu mudar o jogo do rap?
Ele é um bom jogador. É um cara que sobrevive, um cara forte, inteligente.
Nesse sentido, hoje, a música é mais democrática?
Completamente. Você consegue comunicar com as pessoas, com a sua rede. Eu sempre falei que periferia é massa, e essa massa existe, desde que você não negligencie e nem ignore, eles vão estar com você. É simples assim. Eu cantei para aquele povo que não tinha acesso à internet. Ele canta para o povo que já tem acesso à internet. Sou totalmente consciente da minha situação no jogo.
Gosta do disco do Criolo? Acha que ele é um cara que…
Inteligente.
Ele ter chegado em outros ouvidos acrescenta o que para o rap?
Ele não tem que acrescentar nada para o rap. Ele tem que acrescentar para as pessoas. O rap é só uma classe e eu não sou a favor de defender classes. O rap tem que servir e não ser servido. A gente não pode esperar, por exemplo, que quando o cara do rap chega lá em cima, que ele vá olhar para baixo e começar a ajudar. Não tem nada a ver! Não pode ser assim, não deve ser isso. Tem que ser forte o bastante pra chegar lá também. Não é chegar lá em cima e olhar para baixo para resgatar. Já está no trabalho, normalmente, o resgate.
Só de chegar lá, automaticamente já…
Automaticamente já vem um bolão de gente junto com você. Você já teve que construir para chegar lá. Você não chega lá e vai começar a resgatar um por um. Não dá para chegar lá assim.
Como é que você vê a indústria fonográfica no momento?
Existe um comércio sim, só que não é só a música, certo? Você tem que ter outras coisas para oferecer às pessoas. É som e imagem. Então já não é mais o fonográfico, já é um monte de coisa, já é uma calda longa. É a musica mais a imagem, mais a roupa, mais a pessoa, mais o posicionamento dela. É um monte de coisa. Já foi a época em que você vendia o CD e bastava. Hoje não basta mais. É muito pouco. Precisa de um monte de coisa. É um trabalho mesmo.
E vocês têm pensado nisso?
Tenho vivido isso. De 2002 a 2010 passamos uma crise profunda. Deu para aprender um pouco. Teve uma crise fodida, de realmente a moeda bater no fundo da lata. Da época, né? Eu vi o rap subir de novo de 2010 pra frente. Nesses últimos quatro anos foi o grande lance. Cresceu mais do que nos últimos vinte anos que antecederam.
Por quê?
Por essa visão profissional que está sendo instaurada agora. De que é um movimento estabelecido, de que tem que ser levado a serio, de que tem que ter compromisso com horário, organização. Não é só um discurso, não é mais aquele bagulho de adolescente. Agora são homens.
E tem uma história a ser respeitada…
Qual é o maior compromisso da “revolução”, entre aspas? É mostrar envolvimento, você pôr sua inteligência dentro dela, sua mão de obra, o conhecimento que você aprendeu naquela causa. Como é que você consegue mostrar isso? Quando a sua empresa vai bem, quando você paga as pessoas direito, quando você dá emprego para mais pessoas. Aí é trabalho! Não é movimento, onde um faz e fica um monte de gente sem condições de fazer nada. Tem que dar condições das pessoas fazerem para ganharem seu dinheiro. Esse é o momento que a gente está vivendo hoje. Essa é a maior evolução. Já não é revolução do discurso, das coisas abstratas, morou? É do trabalho. Se fosse no campo, seria enxada e terra. É na cidade. É trabalho. É envolvimento. É vida, sabe? E é ideologia também.
Então a expectativa para os próximos anos é boa?
Boa. Talvez melhor para os caras do que para mim, mas vai ser boa.
Melhor para o sangue novo que está chegando?
Com menos cobrança, menos questionamento. Uma visão mais ampla, mais livre.
Você sempre se questionou muito?
Eu questiono porque não basta ser.
Mas ultimamente você está mais de boa?
De boa mesmo nunca. Eu me questiono porque é fácil você parar no tempo. Então eu tenho que estar sempre procurando ser útil, né? Você tem que conseguir fazer sua parte, saber que muito mais gente vai ser beneficiada com aquela atitude que você tomou. Não uma atitude que vai fazer bem para você, encher seu ego. Então, o “revolucionário” tem que passar a ser útil. Parar de ser mentor dos comuns. Não! Vai crescer junto.
É essa revolução interna que você está passando agora?

É interna também, mas não é uma coisa que eu mudei. Nunca achei que o movimento tinha que ser uma ONG. Houve um momento em que a ideia da ONG era prioridade, mas na melhor oportunidade, o mais rápido possível, tem que deixar de ser ONG. É questão de sobrevivência. É que nem o lance de cotas. É polêmico, mas fundamental agora. Um dia vai deixar de ser. Vai chegar o dia em que o negro não vai precisar de cotas. As pessoas vão disputar a vaga de igual para igual. Naquele momento do rap era necessário ser uma ONG. Em 1992, não em 2014.
E a revolução vem de dentro?
Vem de dentro e de fora. A revolução está em volta de você. E dentro de você. Está acontecendo. Mas se você não fizer, alguém vai fazer de qualquer forma.
Esse novo momento do rap tem relação com vocês estarem mais abertos para falar com a imprensa?
Mas quem está mais aberto a falar com a imprensa?
Nós queremos te entrevistar faz tempo… É uma vontade não só da CULT, mas de toda imprensa…
Hoje mesmo eu fui convidado para fazer uma entrevista para o Estadão. E falei não.
A postura é a mesma de sempre ou…
Eu escolho com quem quero fazer e na época que quero fazer. Quando me é conveniente, eu faço.
Pode ser útil…
Considero útil. Mas eu sou imprensa também. Se quiser soltar uma nota agora eu solto, escrita por mim mesmo. Tenho cento e vinte mil seguidores no Instagram. Tem jornal que não tem tantos assinantes.
E serve para semear ideias?
Semear ideias eu já faço há muito tempo. Tem muita gente semeando ideias, todas dignas de serem ouvidas. Tem muita gente falando o que pensa e não é só o Brown, né? Senão vira chavão. Eu virei chavão dessas ideias, de ter que falar essas coisas. “É assunto de racismo? Chama o Brown.” De todas as palestras que teve sobre racismo nos últimos anos eu corri.
Mas mesmo assim o chavão continua?
É. Tem alguns encontros que já viraram chavão. Se eu for no movimento negro pra falar dos negros para os negros é fazer o de sempre. É fazer o óbvio. E dá pra viver de óbvio também, fingindo que está fazendo. Eu não quero isso, entendeu? Que evolução tem nisso? “Solta as músicas revolucionárias aí, Brown!” É assim? Oxe! Revolução é assim? Como assim? Tá louco? Não é assim não. Revolução de 2014 é o quê? É Regina Casé, tá ligado? Melhor programa [“Esquenta!”] da televisão brasileira hoje, querendo ou não. O movimento negro vai vomitar quando ler isso. É uma pessoa que vem lutando, vem disputando, vem acompanhando e chega um momento que faz um grande programa de TV, morou? Do jeito que as pessoas são, fazendo o que elas são, vivendo o que elas são. Não tenho vergonha de ninguém ali, tenho orgulho. Eu me vejo em todos eles ali.
O disco solo funciona pra isso, pra você se libertar?
Eu sou livre! Está fodido quem quiser me aprisionar. Quando falei que vou fazer soul music, vou fazer doa a quem doer. Não estou nem aí. Eu sou rebelado. Se falar de amor é rebelião, eu tô nessa, entendeu?

fonte: revista Cult

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